A Força Gravitacional da Pobreza

Como o ambiente, a cultura e a estrutura estatal aprisionam mental, econômica e territorialmente o indivíduo periférico.

CRÍTICA SOCIAL

voxeterna

4/17/20256 min read

Falemos sobre a força gravitacional da pobreza — essa energia invisível, porém implacável, que arrasta para baixo quem habita as regiões periféricas das grandes cidades. Ela atua como uma âncora emocional, territorial, cultural e material, dificultando ao máximo a saída e a ascensão social daqueles que lutam para se libertar.

A pobreza não é apenas uma condição financeira ou uma falta de recursos materiais. Ela é também um estado psicológico — e, por que não dizer, metafísico. Há uma densidade própria nos territórios periféricos que aprisiona. Uma espécie de atmosfera opressiva, que impõe uma resistência constante a quem tenta escapar. Favelas, conjuntos habitacionais precários, bairros marginalizados, todos esses espaços produzem um ambiente de retenção involuntária, como se houvesse uma força de gravidade social que impede o voo daqueles que ousam sonhar mais alto.

Essa gravidade se expressa, por exemplo, no estigma do endereço - isso quando se tem de fato um endereço físico/fiscal, o que não é realidade para milhões de pessoas que habitam em ocupações irregulares. Basta revelar que se mora na favela, em uma ocupação, ou mesmo em uma COHAB, e o peso invisível da suspeita recai. Empregadores hesitam. Amigos do centro se retraem. Professores ajustam expectativas. Mesmo quando não é dito, está implícito: "Você não pertence". Esse julgamento carrega estatísticas de criminalidade, baixa escolaridade, tráfico de drogas, evasão escolar, violência doméstica — dados que passam a habitar o corpo de quem vive ali, como um rótulo inevitável.

Mas a gravidade da pobreza não vem apenas de fora. Ela está também dentro da comunidade. Está nas vozes que desencorajam, nos olhares que acusam. Quando alguém tenta sair, mesmo que minimamente, surgem as cobranças: "Você esqueceu suas origens", "virou as costas para os seus irmãos da quebrada", "não quer mais colar nos rolês". Tudo o que não cabe mais na nova fase vira motivo de desconfiança. Você começa a mudar seus interesses, seus hábitos, suas conversas — e, com isso, passa a ser visto como alguém que mudou demais, que ficou "de nariz empinado". A própria comunidade muitas vezes te puxa de volta, não por maldade, mas por ter se rendido à força da gravidade que você tenta desafiar.
É a concretização do "Eu só quero é ser feliz, andar tranquilamente na favela onde eu nasci, e poder me orgulhar e ter a consciência que o pobre tem seu lugar". Talvez você não tenha prestado atenção, mas este clássico trecho do "Rap da felicidade" diz, com todas as palavras, que o lugar do pobre é a favela, quase como uma condição imutável! E este é o pensamento que impera, também, na midia mainstream e nas lideranças governamentais.

E há ainda o fator trágico das emergências constantes. Quando, finalmente, você consegue guardar seus primeiros cinco mil reais, a realidade intervém: o carro quebra, um parente precisa de ajuda, você é assaltado, o computador essencial para seu trabalho queima. Tudo conspira para que aquele pequeno passo adiante seja revertido. A pobreza não permite planejamento. Ela exige sobrevivência.

Ascender é, sim, possível. Mas raro. Muitos conseguem numericamente. Poucos, proporcionalmente. E menos ainda conseguem permanecer fora.

Culturalmente, nas últimas décadas, vimos uma verdadeira campanha explícita de valorização, aceitação e romantização da periferia e do modo de vida periférico. Mas essa valorização não se dá no sentido virtuoso de demonstrar que as origens não definem o destino. Pelo contrário, é uma tentativa disfarçada de manipular a sociedade para que se acomode e aceite sua realidade. Quase uma estratégia maquiavélica de aprisionamento mental e cultural dessa população, impedindo-a de enxergar que não — morar em uma área de risco de desabamento, alagamento ou de bala perdida não é algo positivo. Que ser ameaçado por uma atmosfera opressora e ter de aceitar absurdos, como vizinhos que se sentem no direito de ligar músicas pornográficas no último volume, também não é aceitável. Assim como não é aceitável a ideia de que você não pode sonhar em sair dali porque "morar na periferia está tudo bem".

A aceitação da cultura periférica — como o funk, que se tornou mainstream — é uma das formas de manter a juventude bestializada. Um estilo que, em sua forma predominante, não demanda estudo, refinamento ou aquisição de qualquer habilidade musical para que alguém se torne famoso.

A transformação de gêneros como o funk em fenômenos mainstream é outro exemplo. Embora existam produções que fogem à regra, o funk que domina hoje é o que mais estimula a vulgaridade, o hedonismo vazio e a glorificação do crime. Ele não exige estudo, não requer habilidade musical, não valoriza o esforço. Tornou-se uma trilha sonora para a paralisia. E tudo com pesado investimento estatal direta (através de oficinas culturais) e indiretamente (através da liberação de verbas milionárias para artistas do estilo, que acabam virando referenciais de sucesso, e do financiamento de programas de TV que propagandeam e dão espaço exacerbado a este estilo).
Onde antes o sonho era ser jogador de futebol, depois pagodeiro, depois traficante, hoje é ser MC — mais um, entre milhares. Sonhar com excelência virou exceção.

Poucos sonham em dominar um instrumento musical, aprender um ofício, ser um bom profissional. A cultura pop, com apoio de redes sociais e mídia gratuita, destruiu a imaginação de milhões de jovens, condenando-os à repetição. O destino já vem escrito: repetir a vida dos pais, dos tios, dos vizinhos — sem ruptura, sem perspectiva, sem rebeldia criativa.

Essa dinâmica se relaciona, também, com um conceito pouco discutido: a proxêmica. A proxêmica é o estudo da relação entre as pessoas e o espaço — quanto mais próxima a distância física entre as pessoas, mais baixa é a proxêmica. O brasileiro médio, assim como o latino-americano em geral, possui uma proxêmica extremamente baixa. No transporte público de São Paulo, por exemplo, ela é praticamente negativa — as pessoas se espremem além do limite da física. Em contraste, em um trem na Noruega, por exemplo, as pessoas mantêm distância e respeitam o espaço do outro.

Essa baixa proxêmica se traduz também na ocupação do território: favelas são ambientes de altíssima densidade e baixíssima privacidade. O que acontece no barraco ao lado se impõe multisensorialmente sobre você. Seu vizinho influencia seu gosto musical, seus hábitos, suas conversas. A favela, com sua alta densidade, barracos colados uns aos outros, ausência de privacidade, é o retrato físico da baixa proxêmica. Não há privacidade; pelo contrário, você é forçado a compartilhar de sua intimidade e a ter a intimidade de seus vizinhos compartilhada com você, queira você ou não. A individualidade se dissolve.


É impossível não ser impactado. Extrapolando essa microrrealidade, temos a favela formada com esse nível de interferência nas vidas umas das outras de todos os que ali habitam. Diante deste fato, suas referências culturais, seu repertório de vida acaba ficando extremamente restrito e diretamente impactado pelas trocas feitas neste ambiente de proxêmica quase inexistente. Quando você sai deste ambiente e se desloca até uma região mais nobre, a realidade é completamente diferente e, alí, você passa a se sentir um alien, tanto em questão comportamental quanto em questão cultural e, principalmente, financeira. Sair da favela já é uma dificuldade tremenda diante de tudo já exposto aqui, e acima disso ainda está a realidade de que, para sair da favela, você precisará encontrar uma habitação que você consiga pagar, o que via de regra te jogará para uma habitação de interesse social, ou em muitos casos uma habitação popular, como uma COHAB ou CDHU. Ainda que muito precário, você, ali, já passa a ter uma proxêmica muito maior, ainda muito aquém do que seria uma proxêmica de nação desenvolvida, mas já muito mais próxima da realidade dos bairros de classe média. Uma transição.

Essa é a verdadeira epopeia de quem nasce na periferia: conquistar sua emancipação cultural, financeira e territorial. Sair da favela é uma vitória. Mas a saída real virá quando houver mais oportunidades — e elas não virão do Estado. Virão da redução do peso que o Estado impõe sobre os mais pobres. É o pobre quem mais sofre com o excesso de burocracia, de impostos, de decisões tomadas por elites políticas que jamais pisaram em uma favela. Ainda que o estado forneça algum programa assistencial, não se engane: Quanto maior é o estado e sua interferência na sociedade e no mercado, maiores são as barreiras impostas para as populações mais pobres ascenderem.

A solução está no mercado, no mérito, no valor agregado. Por isso, trabalhe, estude, se qualifique, ofereça algo valioso para o mundo. Vá além do que é pedido. Planeje-se. Aproveite cada oportunidade. Se o Estado oferecer uma bolsa, use-a com sabedoria. Você não deve nada a quem te rouba sistematicamente e ainda tenta te domesticar com uma cultura progressista que só serve para manter o cabresto bem ajustado.

A saída está em suas mãos. E o que você carrega nas mãos é mais forte do que qualquer estigma que colocaram sobre você.

Você não é o lugar onde nasceu. Você é o caminho que escolheu trilhar.

Obs.: O Autor do post nasceu e cresceu na periferia da zona norte de São Paulo.